A Guerra de Canudos

16-01-2011 07:52

A chamada Guerra de Canudos, revolução de Canudos ou insurreição de Canudos, foi o confronto entre um movimento popular de fundo sócio-religioso e o Exército da República, que durou de 1896 a 1897, na então comunidade de Canudos, no interior do estado da Bahia, no Brasil.
O episódio foi fruto de uma série de fatores como a grave crise econômica e social em que encontrava a região à época, historicamente caracterizada pela presença de latifúndios improdutivos, situação essa agravada pela ocorrência de secas cíclicas, de desemprego crônico; pela crença numa salvação milagrosa que pouparia os humildes habitantes do sertão dos flagelos do clima e da exclusão econômica e social.
Inicialmente, em Canudos, os sertanejos não contestavam o regime republicano recém-adotado no país; houve apenas mobilizações esporádicas contra a municipalização da cobrança de impostos. A imprensa, o clero e os latifundiários da região incomodaram-se com uma nova cidade independente e com a constante migração de pessoas e valores para aquele novo local passaram a acusá-los disso, ganhando, desse modo, o apoio da opinião pública do país para justificar a guerra movida contra o arraial de Canudos e os seus habitantes.

    
Aos poucos, construiu-se em torno de Antônio Conselheiro e seus adeptos uma imagem equivocada de que todos eram "perigosos monarquistas" a serviço de potências estrangeiras, querendo restaurar no país o regime imperial, devido, entre outros ao fato de o Exército Brasileiro sair derrotado em três expedições, incluindo uma comandada pelo Coronel Antônio Moreira César, também conhecido como "corta-cabeças" pela fama de ter mandado executar mais de cem pessoas na repressão à Revolução Federalista em Santa Catarina, expedição que contou com mais de mil homens. A derrota das tropas do Exército nas primeiras expedições contra o povoado apavorou o país, e deu legitimidade para a perpetração deste massacre que culminou com a morte de mais de seis mil sertanejos. Todas as casas foram queimadas e destruídas.
O conflito foi retratado no livro "Os Sertões" de Euclides da Cunha, que o testemunhou como repórter do jornal O Estado de S. Paulo.


O Combate de Uauá


Relatório do Tenente Pires Vieira, Comandante da I Expedição Contra Canudos.


 “Combate de Uauá – Logo que chegamos ao arraial, no dia dezenove, mandei estabelecer o serviço de segurança, postando guardas avançadas nas quatro estradas que ali conduzem em distancia conveniente, a fim de evitar qualquer surpresa; nomeei o pessoal de ronda, e conservei toda a força no acantonamento. O dia vinte passou-se sem nenhum incidente notável, a não ser o abandona do arraial à noite, e furtivamente, por quase todos os habitantes. Das informações que colhi consta que assim procederam com receio da gente do Antonio Conselheiro. Inclino-me, porém, a crer que se achavam mancomunados com esta para atraiçoarem a força publica, como o fizeram, pois que até os poucos que ficaram no arraial não foram ofendido pelos bandidos, e garantiram-me antes do combate que ali não havia fanáticos, nem adeptos do Antonio Conselheiro; que este e o seu povo se achavam em Canudos, de onde não saíram, não obstante terem ele a certeza quando isso me afirmaram de que os mencionados bandidos se achavam a quatro léguas de distancia, dirigidos por Quimquim Coyam, e viram atacar a força na madrugada do dia imediato.
Às cinco horas da manhã do dia vinte e um, fomos surpreendidos por um tiroteio partido da guarda avançada, colocada na estrada que vai ter a Canudos. Esta guarda, tendo sido atacada por uma multidão enorme de bandidos fanáticos, reistiu-lhes denodamente, fazendo fogo em retirada. Por essa ocasião o soldado da segunda companhia Teotônio Pereira Bacellar, que por se achar muito estropiado não pode acompanhar, a guarda foi degolado por um bandido. Imediatamente, dispõe a força para a defensiva, fazendo colocar em distancia conveniente do acantonamento uma linha de atiradores, que causou logo enormes claros nas fileiras dos bandidos.

Estes, não obstante, avançaram sempre, fazendo fogo, aos gritos de viva o nosso Bom Jesus! Viva o nosso Conselheiro! Viva a monarquia! Etc., etc., etc., chegando até alguns a tentarem cortar a facão os nossos soldados. Um deles trazia alçada uma grande cruz de madeira, e muitos outros traziam imagens de saltos em vultos. Avançaram e brigaram com incrível ferocidade, servindo-se de apitos para execução de seus movimentos e manobras. Pelo grande numero que apresentaram foram por algumas praças calculadas em três mil! Há, porém, nisso exagero, proveniente de erro de apreciação; seriam uns quinhentos, mais ou menos, os que nos atacara, divididos em vários grupos, que procuravam envolver a nossa força e apoderar-se do arraial, o que não conseguiram devido às enérgicas providencias que tomei eficazmente auxiliado pelos oficiais e a disciplina das praças. Conseguiu entretanto, grande numero deles, apoderar-se de algumas casas abandonadas, que se achavam desguarnecidas por insuficiência da força e de onde nos fizeram algum mal, mas, sendo necessário incendiar as ditas casas, a fim de desalojá-los, o que conseguimos depois de algum trabalho.
Chegados a esta fase do combate, depois de mais de quatro horas de luta, conhecendo que eles já se achavam desmoralizados, pela dificuldade com que respondiam, ao nosso fogo, e porque já tentavam fugir, passei a tomar à ofensiva, e fiz perseguir até meia légua de distancia, morrendo muitos deles nessa ocasião, e ficando o resto completamente desbaratado. Não levei mais longe a perseguição e mandei toca a retirar, por constar-me, achar-se um grande reforço deles um pouco adiante, e por estar a nossa gente cansada e sem alimentar-se desde a véspera. Além disso, cumpria-me reunir os elementos que me restavam, a fim de resistir a uma nova agressão que porventura se desse. Seria pouco mais ou menos meio dia, quando terminou essa luta, com o regresso de nossas praças ao acantonamento, sem que durante a perseguição tivesse sofrido prejuízo algum. Na fase mais aguda do combate, houve fogo incessante e renhido de parte a parte, durante mais de quatro horas. Todos os oficiais, inferiores e praças portarem-se nessa emergência com um heroísmo e uma disciplina sem par, o que muito concorreu para seu bom êxito, faltando-me palavras com que possa exprimir o procedimento nobre, correto e entusiasmado de que deram exuberantes provas, honrando assim a corporação a que pertencemos.
Os inimigos deixaram no campo e dentro das casas que ocupavam mais de cento e cinqüenta cadáveres, sendo incalculável o numero de feridos que tiveram e dos que foram morrer pela estrada, ou dentro das catingas. As nossas perdas foram, aliás, insignificantes quanto ao numero, sendo, porém, dolorosamente sensíveis e lamentáveis, por terem sido vitimados pelas balas dos bandidos o distinto e temerário alferes Carlos Augusto Coelho dos Santos, o bom e destemido segundo sargento Hemeterio Pereira do Santo Bahia, os valorosos cabo de esquadra Manoel Francisco de Souza, anspeçada Antonio Joaquim do Bomfim, soldados Herculano Ferreira de Araujo, Victorino José dos Santos e João Chrysostomo de Abreu, além do já mencionado Bacellar, que foi degolado no começo da ação, tendo sido assim a primeira vítima. Ficaram feridos: gravemente - cabos de esquadra Cesário João dos Santos, Manoel Antonio do Nascimento, Pedro Leão Mendes de Aguiar, anspeçadas Tiburtino de Oliveira Lima, Minervino Belo da Cruz, soldados José Antonio Moreira, Casemiro de Freitas Passos, João Ferreira de Pinho e Virgilio Manoel dos Reis; levemente - cabos de esquadra Atanásio Felix de Sant'Anna e Salustiano Alves de Oliveira, anspeçadas João Evangelista de Lima e Rafael Pereira Cardoso, soldados - Antonio Bispo de Oliveira e Feliciano José dos Santos. Faleceram também na luta, os paisanos Pedro Francisco de Moraes e seu filho João Baptista de Moraes, que nos serviam de guias, e que se portaram com galhardia na ocasião do combate, juntando-se à força e enfrentando os bandidos. Eram ambos casados e deixaram família sem recursos. Perdemos, portanto, um oficial, um inferior, um cabo de esquadra, um anspeçada e quatro soldados, que com os dois paisanos guias dão um total de dez homens mortos no referido combate. Me cumpre ainda notar que alguns casos de morte se deram por excessos de bravura, praticados pelas vítimas que se expunham sem necessidade ás balas do inimigo. Os cadáveres do oficial e das praças foram cuidadosamente sepultados na capela do arraial, os dos bandidos ficaram insepultos por não dispormos de tempo, pessoal, nem dos instrumentos necessários para o enterramento deles. Fomos forçados a retirar para Juazeiro, na tarde do mesmo dia do combate, não só para evitar o mal que poderia advir da decomposição de tantos corpos, como também pela falta de viveres e outros recursos em Uauá.
Os bandidos estavam armados em grande parte com carabinas Comblain e Chuchu, outros tinham bacamartes, garruchas e pistolas, e quase todos traziam, além das armas de fogo, grandes facões, foices e machados. O Dr. Antonio Alves dos Santos, medico adjunto do exercito, que acompanhou a força, prestou - reais serviços durante o combate, tratando as praças feridas com interesse e desvelo, mostrando-se na altura da humanitária missão que lhe fora confiada; tendo, porém, depois de terminada a luta apresentado sintomas de desarranjo mental, entregou os feridos logo que cheguei ao Juazeiro aos cuidados do facultativo civil Dr. Antonio Rodrigues da Cunha Melo que se encarregou do tratamento, fazendo-o com dedicação, solicitude e interesse, operando até algumas praças, no que foi auxiliado pelo cirurgião dentista Brigido Pimentel, que muito se prestou durante alguns dias com incansável zelo.
ARMAMENTO - O fuzil Mannlicher, de que se acha ainda armado o batalhão, com quanto seja de repetição e de grande alcance, com seu projetil dotado de uma força de penetração extraordinaria, e dando ao tiro uma justeza admirável, com tudo não compensa com essas boas qualidades, aliados a muitas outras que possui, o prejuízo resultante da extrema delicadeza de seu mecanismo que facilmente se estraga, ficando o fuzil reduzido a simples arma branca, quando adaptado no extremo do cano o componente sabre-punhal. Basta um pouco de poeira ou um simples grão de areia, introduzido na câmara, para que não possa o ferrolho funcionar. Acontece, além disso, que com o fogo um pouco prolongado os carregadores não podem entrar no deposito com o numero de cartuchos regulamentar, dilata-se o aço do cano que, aumentado de diâmetro, dificulta a introdução dos cartuchos para o tiro simples, não podendo a arma funcionar como as de repetição. Dahi um grande numero de armas incapazes para o seu mister na ocasião oportuno, como aconteceu no combate em que tive de total das mãos das praças, a fim de ver si conseguia fazer funcionar, sendo infrutíferos todos os esforços nesse sentido. Mesmo em muitas das armas que funcionava, o extratos, peça de grande delicadeza, perdia a necessária justeza e enfraquecia a mola, deixava de extrahir o cartucho, que tinha de ser extraído á mão, o que prejudicou a rapidez do tiro. Esse armamento não convém ao nosso exercito, por não dispor ainda este de meios de transporte fácil, rápido e com modo, de que dispõem os exércitos europeus; não merece a confiança dos oficiais, nem das praças que deles se utilizam, por não poderem contar, com segurança, com seus bons efeito numa emergência qualquer. Não obstante os assíduos cuidados que tive pela boa conservação do armamento das praças, pois que como é intuitivo do estado dele dependeria, em grande parte, em umas dadas circunstâncias, a Victoria ou derrota de nossa força, ainda assim tive o desprazer de observar o que venham de referir. Durante o combate muitas armas ficaram também inutilizadas por outros motivos, umas perderam os respectivos ferrolhos que saltaram com a violência do choque na defesa á arma branca, outras tiveram as coronhas partidas a talho de facão ou por balas; algumas ficaram com a camisa do cano inutilizada por bala, muitas seus sabres punhais, e ainda outras com os depósitos arrebentados. A poeira e as escabrosidades das estradas, o calor de um sol abrasador e insuportável, as condições em que foram feitas as marchas, sem comunidade de ordem alguma, tudo isso, frustrando os meus previdentes cuidados, deram o resultado acima apontado. Acontece ainda que essas armas que serviram na campanha de S. Paulo e Paraná, em mil oitocentos e noventa e quatro, já se achavam bastante usadas, tendo a mor parte delas sofrido concertos. Outras fossem as condições de resistência e solidez de seu mecanismo, e melhor teria sido o resultado obtido na luta.
FARDAMENTO - O das praças que conduziram a força de meu comando ficou bastante estragado, em estado mesmo de não poder continuar a servir, devido à ação dos raios solares, da chuva e da poeira, e ainda do uso constante que dele fizeram, por necessidade, pois que não só marchavam, como dormiam com ele, á noite, sobre o solo nu e barrento das estradas, pela falta de barracas; e também pela necessidade de conservar-se a força sempre em armas em sítios cuja topografia nos era desconhecida, e onde não podíamos fiar em informações adrede preparadas, com o intuito de nos iludir. Muitas praça tiveram ainda algumas peças de seus uniformes, perdidas por completamente inutilizadas, como fossem túnicas de flanela cinzenta e calça de pano garante, rasgadas pelos galhos das arvores e espinhos das picadas, estrada, etc. Algumas perderam na marcha as gravatas de couro, outras tiveram no combate os gorros e os capotes crivados de balas ou cotejados a facão, em farrapos e ensangüentados. Ainda outros perderam os gorros, levados pelas balas. O calçado incapaz de resistir a uma marcha tão longa, e por tão maus caminhos, estragou-se, ficando um grande numero de praças descalças.
DICIPLINA - Foi mantida em toda sua plenitude, sem que tivesse havido, infração alguma digna de nota, durante todo o período de meu comando.
Quartel da Palma, na Bahia, 10 de dezembro de 1896 - Manuel da Silva Pires Ferreira, tenente “
 (Apud Aristides Milton, 1902, p.35)