Antônio Conselheiro ainda é líder

16-01-2011 08:21
Ensaio político à margem da obra de
 
Euclides da Cunha
 

Poços de Caldas, MG - São José do Rio Pardo, MG

2001

Desenhada pelo autor.

Montagem do que poderia ser uma fotografia da serra que contém Poços de Caldas e São José do Rio Pardo e duas gravuras, uma de Alexandria, onde estava localizada a maior e mais famosa Biblioteca da Antiguidade, a outra da dramática Torre de Babel.

 

Prefácio do Amigo

 

                Foi no final da primeira década do século passado, 1909, para ser mais exato, que Poços de Caldas recebeu, de bom grado, o ilustre Francisco Escobar. Homem de cultura e visão, indicado pelo então Presidente do Estado de Minas Gerais, Venceslau Brás, para ocupar o cargo de prefeito da considerada como a maior estância hidromineral da América Latina, incumbência que executou com rara competência, lançando os fundamentos básicos do desenvolvimento daquela que é hoje a maior cidade do sul de Minas.

                Foi no início do século passado, 1901, para ser mais direto, que São José do Rio Pardo assimilou, em boa hora, a presença em terras paulistas vizinhas aos grotões sulmineiros, do escritor, ensaísta e jornalista fluminense Euclides da Cunha. Ainda muito jovem, influenciado pelo Positivismo (toda a atividade filosófica e científica deve efetuar-se somente no quadro da análise dos fatos verificados pela experiência), tornou-se abolicionista e republicano.

                Canudos, a rebelião, o movimento popular que sacudiu o nordeste da Bahia (1896/97), episódio que serviu de matéria-prima para a obra “Os Sertões”; cara-a-cara com Antônio Conselheiro, beato tido santo no arraial de Belo Monte; entre uma água sulfurosa e outra, aqui nas Caldas mineiras, com o águia de Haia, o baiano Ruy, que foi p’ra Inglaterra ensinar Inglês; com Francisco Escobar, em idas e vindas pelas novas Entradas e Bandeiras a singrar sertões, o chão de terra batida das vindas e idas do trecho café-com-leite ligando Minas e São Paulo, estrada natural.

                Final do século passado, 2000, para ser mais preciso. Lá vem o carioca Jorge Fontes, fluminense no verdadeiro sentido literal a passear sua fala e plantar seus escritos no (às vezes) arenoso canteiro da mineiridade, a descobrir Francisco Correa Netto – para todos nós o Chiquinho, Dom Quixote Caipira Carregado de Mineirices – e redescobrir Euclides, Escobar e tantos outros personagens da não-ficção tupiniquim que a mão de Deus levou.Vai, Jorge! Vai adotar um comportamento epicurista, aproveitar o seu tempo de mineiridade, livre de outros temas que insistem em querer tira-lo, sem sucesso, da sintonia de onde estava localizada a maior e mais famosa Biblioteca da Antiguidade, para leva-lo a um passeio, sem volta, à dramática Torre de Babel. Salve, Jorge! Antônio Conselheiro ainda é líder. E como diria o outro Antônio, o Cândido, “As atuais formas poéticas quase nunca atingem um público extenso”. Não é “vero”?!?!

 

Cassinho da Rocha

Jornal da Cidade

Outono de 2001

Prefácio

do autor

            Este não é o meu quarto livro. Antes do terceiro, dado a público em 15 de dezembro de 2000 – “Teoria do Céu” – dois ou três projetos têm me ocupado, um deles terá o nome de “Ninguém escreve ao Mestre Ou De Dois Mil não Passarás” – Prospecções Livres ou Ilusórias nos universos da Física, da Metafísica e do Sobrenatural (Anexo: Futuro – Deus e o Diabo na Terra dos Homens). São trabalhos de poeta, no máximo jornalista, ou livre pensador. Este “Antônio Conselheiro ainda é líder” cresceu até ajuntar-se como um livro a partir da publicação de uma série de artigos no Jornal da Cidade, de Poços de Caldas, onde moro desde 4 de novembro de 2000.

            Dos projetos inacabados, referi o “Ninguém escreve ao Mestre Ou De Dois Mil não Passarás” porque, depois do contato com as coisas da minha nova cidade, pareceu-me que seus textos assumiram todas as razões da minha migração para Minas Gerais. De verdade, eles já me vinham dominando muito severamente as leituras e os estudos, de jeito mesmo a me aproximar de um certo academicismo que rejeito ou tento me desligar, por conta de um ofício que nada tem de acadêmico[2]. Os artigos publicados na coluna “A CIDADE”, no Jornal da Cidade, seguiram o mesmo compasso ou ritmo. Logo descobri uma parte da história de Francisco Escobar, viajei para São José do Rio Pardo e a sedução completou-se. O quarto livro – não posso chamá-lo de outra maneira – formou-se, adaptou-se para tomar jeito de unidade acabada e encorajou-me a vê-lo publicado.

                É este “Antônio Conselheiro ainda é líder”

                A abrangência disciplinar e científica do conhecimento de Euclides da Cunha, para mim e por mim, é insuperável. Continuar a escrever à margem dos seus trabalhos foi uma relação prazerosa, engajada, e de consciência política, tal a respondesse o aluno ao professor, ao mestre de brasilidades e universalidades. Cem anos são e foram muito poucos. A obra de Euclides da Cunha, hoje, sobre e sob todas as atualizações das ciências sociais e tecnologias afins, conforma um quadro completo de pré-condições ao exercício de projetar-se o “Plano de uma Cruzada[4]”.

 

                Há um método. “Os Sertões”, “Contrastes e Confrontos” e “À Margem da História” cobram um método do leitor. Um método de leitura, de anotações, de pesquisas, enfim, de concentração, meditação e de formação de convicção sobre a seriedade e a profundidade de quaisquer dos temas abordados por Euclides da Cunha. Escrever outros três livros é desperdício; importa é exercitar a experiência aprendida e apreendida no Himalaia desconhecido, no Kaiser esquecido, no Roosevelt, no Anchieta e no Marquês de Pombal, principalmente por uma visão política e civilizatória entrevista, através da abordagem euclidiana, da nossa Amazônia. Deu-se que, por método do aluno, o professor infundiu-lhe a disciplina e a ordem nos artigos publicados no Jornal da Cidade. A seleção realizada cuidou de considerar estes tempos modernos, de poucas leituras e de falta de tempo, justificando-se cada um dos artigos como resultado de um aprendizado efetivo e agradecido.

                Os 49 artigos que transcrevo, todos eles publicados no Jornal da Cidade, explicam e justificam com alguma disciplina e muita coerência – eu acho – o título e a proposta de apresentá-lo em São José do Rio Pardo.

 

                Poços de Caldas, terça-feira, 29 de maio de 2001.

 

Introdução

Não formamos uma nação islâmica. Não formamos uma nação protestante, ou judaica.
Um crucifixo majestosamente instalado em todas as nossas assembléias de representantes do povo também não garante que formemos uma nação católica. Incorretamente, no entanto, uma força não institucionalizada, que sequer pode ou deve ser considerada como majoritária ou minoritária, apresenta fortes indícios de uma provável ou possível fundamentalização das nossa energias religiosas. Ao menos ainda persistem em nossa sociedade, avaliando-a como um todo a espraiar seus mais de 160 milhões de habitantes por mais de 8 milhões de quilômetros quadrados, resistências medievais, ancestrais, atávicas, que agenciam e acionam a formação de lideranças religiosas localizadas mas inscritas num caos geral e nacional.

 

Antonio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro, por sua estatura emblemática de alto representante de nossa religiosidade, deixou incólumes muitos pedestais, muito púlpitos e muitos projetos de construções de igrejas pelo nosso sertão e pelas periferias de nossas megalópoles. Euclides da Cunha, por toda a sua obra, apresenta cada um dos dados e fatos que erguem nítida e transparentemente essa conjectura. Por alto representante de nossa religiosidade, entendo e entenda-se toda a nossa população e todas as suas cargas étnicas, regionais, históricas, mais todos os fatos e ocorrências econômicas e políticas que absolutamente não desfazem a imagem perseverante e preservada de Antônio Conselheiro. Quanto às respostas dos nossos governantes, ante o crescimento de um quadro social nacional que vislumbra uma fundamentalização de nossas energias religiosas, tristemente devemos nos obrigar a entender que os ensinamentos de Euclides da Cunha reverberam no deserto. O mal não foi constatado na época, da mesma maneira que hoje. O mal não está sendo reconhecido hoje, da mesma maneira que há mais de cem anos atrás.

            Monte Santo, sob muitos aspectos, apesar de todas as expedições militares, apesar do final exemplarmente narrado em Os Sertões, não foi absolutamente derrotado. Os homens válidos morrem desempregados; os velhos morrem desassistidos; os jovens vivem a míngua de uma cultura que os aliena e marginaliza em estado permanente.

 

O périplo percorrido pelo Conselheiro, desde sua terra natal, o Ceará, ainda está lá. Suas ramificações e extensões, ao contrário, se estendem a todo o território nacional. Não, não me restrinjo aos aspectos físicos e geográficos de tantos caminhos e estradas, que eu os estendo até onde poderá e pode alcançar o conhecimento humano subvertido e desassentado neste alvorecer do século 21. As ciências sociais, as teorias políticas, os sistemas econômicos, as formas de governo, mais todos os rituais e liturgias do catolicismo ou cristianismo e todas as suas defecções ou dissensões, sem absolutamente isentarmos as religiões africanas, assistem, se refugiam e se acumpliciam em cada uma das curvas, das ribanceiras, dos abismos, das novas e destruídas estradas deste país. E por aí caminha um novo contestador em potencial da nossa atual forma de governo, da nossa envelhecida e sessionada estrutura de Estado, do nosso totalitário sistema político.

            A leitura de parte dos livros escritos por Euclides da Cunha favorece a abordagem destes confrontos num simples exercício de observação e atenção ao atual estádio e movimento de nossa sociedade. Do início do século 20 a este 2001 que vivemos, marcam-se mesmo as alterações e transformações proporcionadas pelos avanços tecnológicos em cima das comunicações. A eletricidade e a luz elétrica, beneficiando a produção industrial – porque sua razão original – e difundindo nacional e uniformemente o comércio – porque sua segunda razão original – talvez sejam a maior superação destes cem anos, em termos de vida doméstica, familiar e urbana, mas não em termos de produção agropecuária e sobrevivência no meio rural e na periferia das cidades de mais de 100 mil habitantes. Nos setores da economia e de alguns segmentos urbanos da sociedade, onde se refletem e se instalam as riquezas e prosperidades das comunicações, nestes, sim, ampliaram-se demasiadamente seus efeitos, sucessos e conseqüências. O meio rural e a periferia das grandes cidades – não se cogitou nunca de um ajustamento sócio-cultural que entendesse, designasse e respeitasse as marcas, símbolos e transformações nacionais – foram agraciados mal e mal, sem jamais reconhecer as dimensões destas revoluções tecnológicas. A modernidade veio, mas não disse por que nem como veio.

Porque só às leis e, por mera formalidade de crença superficial, é que cada assembléia de representantes do povo tem instalado um crucifixo de valor e padrão religioso católico. E que leis são essas que não trazem a pacificação da sociedade? As marcas das nacionalidades, culturais ou políticas que sejam, precisam da força de uma unidade que as elejam verdadeiramente como nacionais, isto é, populares, historicamente assentadas por movimentos democráticos que as identifiquem com a própria terra e seu povo. Desafortunadamente não temos um sistema religioso que sustente monoliticamente a nossa nacionalidade, muito menos o processo legislativo. Ao contrário, agem monoliticamente as ações e forças que dentro das sociedades e seus movimentos acionam marginalmente as populações em busca de bem-estar e felicidade, através de religiosidades descontínuas, desestruturadas e cujas doutrinas e/ou liturgias e/ou rituais em nada sustentam um processo de luta política coerente e capaz de trazer governabilidade ao país.

 

Antônio Vicente Mendes Maciel ainda é líder. É este o propósito deste livro formado em arranjo de artigos publicados no Jornal da Cidade, em Poços de Caldas: trazer luzes a um processo de formação de liderança embrutecida que novamente nos ameaça. O concerto de entidades e instituições governamentais e para-governamentais, públicas e privadas nacionais, não atende às necessidades políticas (sociais e econômicas) da nação como um todo, ensejando e estimulando a desesperada procura de soluções que se distendem muito claramente até ao mundo de sobrenaturalidades, misticismos e crendices disparatadas. Se a nação evidentemente apresenta fortes e claros traços de secessão, á vista do desemprego conjuntural mundial, da recessão acionada internacionalmente, do esfacelamento da representação popular subvertida na convicção falsa e triunfal de uma globalização da economia, há que se temer, de se considerar e respeitar esta possibilidade latente.

 

Persisto em considerar a força de exercício crítico que se transmite ao leitor a leitura atenta e disciplinada de “Os Sertões”, “Contrastes e Confrontos” e “À Margem da História”. No seu livro mais notável e famoso, suas partes se fazem estanques, obrigando e permitindo-nos uma revisitação constante que até nos aproxima de uma didática doutrinação política. A chave-mestra é “Os Sertões” – a formação política. A força da complementação e da integração políticas em “Contrastes e Confrontos” se  mundializa e internacionaliza, inclusive historicamente, quando relemos “O Kaiser”e  a “A Arcádia da Alemanha” a nos refazer de opiniões superficiais para penetrar os meandros subterrâneos da política e das monarquias européias; quando em “Uma Comédia Histórica”, assumimos a liberdade de criticar a corte e assistir o surgimento dos ministros burgueses da monarquia portuguesa. “Plano de Uma Cruzada” é já o projeto, o programa político/econômico/social que se insurge contra até mesmo estes tempos presentes.

 

O ideológico e doutrinário não se ausenta, à força de exigir-se um batimento contra constrastes e confrontos. Euclides da Cunha é professoral e democrata, é engajado e politicamente definido em termos de discussão filosófica e doutrinária. Nada mais forte e poderoso do que transcrever “Um Velho Problema” (também em “Contrastes e Confrontos”), principalmente neste alvorecer do século 21, quando ao Mestre não faltou a menor passagem para a dúvida do aluno e do “político” desatento.

...

Mas esta filosofia natural, tão crescentemente revigorada e favorecendo tanto, no século que passou, o ascendente industrial, era por si mesma – isolada no campo das suas investigações – inapta à verdadeira solução do problema. Dizem-no os insucessos de todos os que o consideraram esteando-se nela, das estupendas utopias de Saint-Simon e dos seus extraordinários discípulos, às alienações de Proudhon, às tentativas bizarras de Fourier e ao soçobro completo da política de Luiz Blanc. Fora logo acompanhá-los. Se o fizéssemos, veríamos que, malgrado todos os recursos das ciências, eles pouco se avantajaram aos sonhadores medievais: o mesmo agitar de medidas fantásticas, e tão radicais, algumas, abalando tanto os fundamentos da sociedade, a começar pela organização da família, que acerretavam ante novos elementos perturbadores e novas faces à questão, dando-lhe um caráter por igual revolucionário e complexo capaz de a tornar perpetuamente insolúvel.

Claude Henri de Rouvroy Saint-Simon, conde de Saint Simon (1760-1825), socialista francês. Combateu na guerra da Independência norte-americana e apoiou a Revolução, renunciando a seu título. É considerado como um dos fundadores e teóricos do socialismo moderno. Sua principal obra é Le nouveau christianisme (O novo cristianismo, 1825).

Pierre Joseph Proudhon (1809-1865), escritor e teórico francês, chamado às vezes de o pai do anarquismo moderno.

 Em seu panfleto O que é a propriedade (1840), denunciou os abusos a que dão lugar a concentração do poder econômico e da propriedade privada.

Imaginava uma sociedade na qual a natureza ética e o sentido moral da responsabilidade seriam tão desenvolvidos no povo que, para proteger e regular a sociedade, não haveria necessidade de um governo. Sua obra mais importante é Sistema das contradições econômicas ou Filosofia da miséria (1846). Outras obras são: Sobre o princípio federativo (1863) e Sobre a capacidade política das classes trabalhadoras (1863).

Blanc, Louis (1811-1882), líder socialista e historiador francês. Reivindicou a ação revolucionária por parte dos trabalhadores e antecipou teorias adotadas posteriormente por Karl Marx. Foi líder do governo republicano provisório após a renúncia do rei Luís Felipe; membro da Assembléia Nacional em 1871 e da Câmara dos Deputados em 1876. É autor de História da Revolução Francesa (1847-1862).

 

Assim ela chegou até meados do último século – até Karl Marx – pois foi, realmente, com este inflexível adversário de Proudhon que o socialismo científico começou a usar uma linguagem firme, compreensível e positiva.

Nada de idealizações: fatos; e induções inabaláveis resultantes de uma análise rigorosa dos materiais objetivos; e a experiência e a observação, adestradas em lúcido tirocínio ao través das ciências inferiores; e a lógica inflexível dos acontecimentos; e essa terrível argumentação terra-a-terra, sem tortuosidades de silogismos, sem o idiotismo transcendental da velha dialética, mas toda feita de axiomas, de verdadeiros truísmos, por maneira a não exigir dos espíritos o mínimo esforço para a alcançarem, porque ela é quem os alcança independentemente da vontade, e os domina e os arrasta com a fortaleza da própria simplicidade.

A fonte única da produção e do seu corolário imediato, o valor, é o trabalho. Nem a terra, nem as máquinas, nem o capital, ainda coligados, as produzem sem o braço do operário. Daí uma conclusão irredutível: – a riqueza produzida deve pertencer toda aos que trabalham. E um conceito dedutivo: o capital é uma espoliação.

Não se pode negar a segurança do raciocínio.

De efeito, desbancada a lei de Malthus, ante a qual nem se explicaria a civilização, e demonstrada a que se lhe contrapõe consistindo em que “cada homem produz sempre mais do que consome persistindo os frutos do seu esforço além do tempo necessário à sua reprodução” - põe-se de manifesto o traço injusto da organização econômica do nosso tempo.

A exploração capitalista é assombrosamente clara, colocando o trabalhador num nível inferior ao da máquina. De fato, esta, na permanente passividade da matéria, é conservada pelo dono; impõe-lhe constantes resguardos no trazê-la íntegra e brunida, corrigindo-lhe os desarranjos; e quando morre – digamos assim –  fulminada pela pletora de força de uma explosão ou debilitada pelas vibrações que lhe granulam a musculatura de ferro, origina a mágoa real de um desfalque, a tristeza de um decréscimo da fortuna, o luto inconsolável de um dano. Ao passo que o operário, adstrito a salários escassos demais à sua subsistência, é a máquina que se conserva por si, e mal; as suas dores recalca-as forçadamente estóico; as suas moléstias, que, por uma cruel ironia, crescem com o desenvolvimento industrial – o fosforismo, o saturnismo, o hidrargirismo, o oxicarborismo – cura-as como pode, quando pode; e quando morre, afinal, às vezes subitamente triturado nas engrenagens da sua sinistra sócia mais bem aquinhoada, ou lentamente – esverdinhado pelos sais de cobre e de zinco, paralítico delirante pelo chumbo, inchado pelos compostos de mercúrio, asfixiado pelo óxido de carbônico, ulcerado pelos cáusticos dos pós arsenicais, devastado pela terrível embriaguez petrólica ou fulminado por um coup de plomb  – quando se extingue, ninguém lhe dá pela falta na grande massa anônima e taciturna, que enxurra todas as manhãs à porta das oficinas.

Neste confronto se expõe a pecaminosa injustiça que o egoísmo capitalista agrava, não permitindo, mercê do salário insuficiente, que se conserve tão bem como os seus aparelhos metálicos, os seus aparelhos de músculos e nervos; e está em grande parte a justificativa dos socialistas no chegarem todos ao duplo princípio fundamental:

Socialização dos meios de produção e circulação;

Posse individual somente dos objetos de uso.

Este princípio, unanimemente aceito, domina toda a heterodoxia socialista - de sorte que as cisões, e são numerosas, existentes entre eles, consistem apenas nos meios de atingir-se aquele objetivo. Para alguns, e citam-se apenas João Ligg e Ed. Vaillant, os privilégios econômicos e políticos devem cair ao choque de uma revolução violenta. É o socialismo demolidor que, entretanto, menos aterroriza a sociedade burguesa. Outros, como Emilio Vendervelde, se colocam numa atitude expectante: as reformas serão violentas ou não, segundo o grau de resistência da burguesia. Finalmente, outros ainda - os mais tranqüilos e mais perigosos - como Ferri e Colajanni, corretamente evolucionistas, reconhecendo a carência de um plano já feito de organização social capaz de substituir, em bloco, num dia, a ordem atual das coisas, relegam a segundo plano as medidas violentas, sempre infecundas e só aceitáveis transitoriamente, de passagem, num ou noutro ponto, para abrirem caminho à própria evolução.

 

Por força de uma clareza histórica de lucidez insofismável, reproduzo o texto que se segue de Euclides da Cunha, a título de abertura das leituras dos artigos jornalísticos que abordam uma parte dos temas nacionais que explicam e justificam este livro.

 

  A SECA

de Euclides da Cunha 

De repente, uma variante trágica.

Aproxima-se a seca.

O sertanejo adivinha-a e prefixa-a graças ao ritmo singular com que se desencadeia o flagelo.

Entretanto não foge logo, abandonando a terra a pouco e pouco invadida pelo limbo candente que irradia do Ceará.

Buckle, em página notável, assinala a anomalia de se não afeiçoar nunca, o homem, às calamidades naturais que o rodeiam. Nenhum povo tem mais pavor aos terremotos que o peruano; e no Peru as crianças ao nascerem têm o berço embalado pelas vibrações da terra.

 

Há na obra de Capistrano de Abreu, duas fases, a do cientificismo, da juventude até meados da década de 1880, na qual foi influenciado pelo positivismo de Auguste Comte, pelo evolucionismo de Spencer, pelo determinismo climático de Henry Thomas Buckle e pelo biologismo de Claude Bernard e a científica propriamente dita, na qual, influenciado pelo historicismo alemão, realizou obra de interpretação sem estar preso aos rígidos padrões deterministas.

 

Herbert Spencer, (1820-1903), teórico social inglês, um dos primeiros sociólogos que, partindo de uma perspectiva evolucionista, pesquisou a mobilidade social. Sua teoria, hoje desacreditada, afirmava que os riscos orgânicos adquiridos eram hereditários. As teorias de Lamark sobre a evolução influíram profundamente em seus estudos. Suas obras mais importantes são Social Statics (1851; A estática social) e The Principles of Ethics (1892-1893; Princípios da Ética).

 

Mas o nosso sertanejo faz exceção à regra. A seca não o apavora. É um complemento à sua vida tormentosa, emoldurando-a em cenários tremendos. Enfrenta-a, estóico. Apesar das dolorosas tradições que conhece através de um sem-número de terríveis episódios, alimenta a todo o transe esperanças de uma resistência impossível.

Com os escassos recursos das próprias observações e das dos seus maiores, em que ensinamentos práticos se misturam a extravagantes crendices, tem procurado estudar o mal, para o conhecer, suportar e suplantar. Aparelha-se com singular serenidade para a luta. Dois ou três meses antes do solstício de verão, especa e fortalece os muros dos açudes, ou limpa as cacimbas. Faz os roçados e arregoa as estreitas faixas de solo arável à orla dos ribeirões. Está preparado para as plantações ligeiras à vinda das primeiras chuvas.

Procura em seguida desvendar o futuro. Volve o olhar para as alturas; atenta longamente nos quadrantes; e perquire os traços mais fugitivos das paisagens...

Os sintomas do flagelo despontam-lhe, então, encadeados em série, sucedendo-se inflexíveis, como sinais comemorativos de uma moléstia cíclica, da sezão assombradora da Terra. Passam as "chuvas do caju" em outubro, rápidas, em chuvisqueiros prestes delidos nos ares ardentes, sem deixarem traços; e pintam as caatingas, aqui, ali, por toda a parte, mosqueadas de tufos pardos de árvores marcescentes, cada vez mais numerosos e maiores, lembrando cinzeiros de uma combustão abafada, sem chamas; e greta-se o chão; e abaixa-se vagarosamente o nível das cacimbas... Do mesmo passo nota que os dias, estuando logo ao alvorecer, transcorrem abrasantes, à medida que as noites se vão tornando cada vez mais frias. A atmosfera absorve-lhe, com avidez de esponja, o suor na fronte, enquanto a armadura de couro, sem mais a flexibilidade primitiva, se lhe endurece aos ombros, esturrada, rígida, feito uma couraça de bronze. E ao descer das tardes, dia a dia menores e sem crepúsculos, considera, entristecido, nos ares, em bandos, as primeiras aves emigrantes, transvoando a outros climas...

É o prelúdio da sua desgraça.

Vê-o acentuar-se, num crescendo, até dezembro.

Precautela-se: revista, apreensivo, as malhadas. Percorre os logradouros longos. Procura entre as chapadas que se esterilizam várzeas mais benignas para onde tange os rebanhos. E espera, resignado, o dia 13 daquele mês. Porque em tal data, usança avoenga lhe faculta sondar o futuro, interrogando a Providência.

É a experiência tradicional de Santa Luzia. No dia 12 ao anoitecer expõe ao relento, em linha, seis pedrinhas de sal, que representam, em ordem sucessiva da esquerda para a direita, os seis meses vindouros, de janeiro a junho. Ao alvorecer de 13 observa-as: se estão intactas, pressagiam a seca; se a primeira apenas se deliu, transmudada em aljôfar límpido, é certa a chuva em janeiro; se a segunda, em fevereiro; se a maioria ou todas, é inevitável o inverno benfazejo[7].

Esta experiência é belíssima. Em que pese ao estigma supersticioso tem base positiva, e é aceitável desde que se considere que dela se colhe a maior ou menor dosagem de vapor d’água nos ares, e, dedutivamente, maiores ou menores probabilidades de depressões barométricas, capazes de atrair o afluxo das chuvas.

Entretanto, embora tradicional, esta prova deixa ainda vacilante o sertanejo. Nem sempre desanima, ante os seus piores vaticínios. Aguarda, paciente, o equinócio da primavera, para definitiva consulta aos elementos. Atravessa três longos meses de expectativa ansiosa e no dia de S. José, 19 de março, procura novo augúrio, o último.

Aquele dia é para ele o índice dos meses subseqüentes. Retrata-lhe, abreviadas em doze horas, todas as alternativas climáticas vindouras. Se durante ele chove, será chuvoso o inverno; se, ao contrário, o Sol atravessa abrasadoramente o firmamento claro, estão por terra todas as suas esperanças.

A seca é inevitável.

Então se transfigura. Não é mais o indolente incorrigível ou o impulsivo violento, vivendo às disparadas pelos arrastadores. Transcende a sua situação rudimentar. Resignado e tenaz, com a placabilidade superior dos fortes, encara de fito a fatalidade incoercível; e reage. O heroísmo tem nos sertões, para todo o sempre perdidas, tragédias espantosas. Não há de revivê-las ou episodiá-las. Surgem de uma luta que ninguém descreve - a insurreição da terra contra o homem. A princípio este reza, olhos postos na altura. O seu primeiro amparo é a fé religiosa. Sobraçando os santos milagreiros, cruzes alçadas, andores erguidos, bandeiras do Divino ruflando, lá se vão, descampados em fora, famílias inteiras - não já os fortes e sadios senão os próprios velhos combalidos e enfermos claudicantes, carregando aos ombros e à cabeça as pedras dos caminhos, mudando os santos de uns para outros lugares. Ecoam largos dias, monótonas, pelos ermos por onde passam as lentas procissões propiciatórias, as ladainhas tristes. Rebrilham longas noites nas chapadas, pervagantes, as velas dos penitentes... Mas os céus persistem sinistramente claros; o Sol fulmina a terra; progride o espasmo assombrador da seca. O matuto considera a pobre apavorada; contempla entristecido os bois sucumbidos, que se agrupam sobre as fundagens das ipueiras, ou, ao, longe, em grupos erradios e lentos, pescoços dobrados, acaroados com o chão, em mugidos prantivos "farejando a água"; - e sem que se lhe amorteça a crença, sem duvidar da Providência que o esmaga, murmurando às mesmas horas as preces costumeiras, apresta-se ao sacrifício. Arremete de alvião e enxada com a terra, buscando nos estratos inferiores a água que fugiu da superfície. Atinge-os às vezes; outras, após enormes fadigas, esbarra em um lajem que lhe anula todo o esforço despendido; e outras vezes, o que é mais corrente, depois de desvendar tênue lençol líquido subterrâneo, o vê desaparecer um, dois dias passados, evaporando-se sugado pelo solo. Acompanha-o tenazmente, reprofundando a mina, em cata do tesouro fugitivo. Volve, por fim, exausto, à beira da própria cova que abriu, feito um desenterrado. Mas como frugalidade rara lhe permite passar os dias com alguns manelos de paçoca, não se lhe afrouxa, tão de pronto, o ânimo.

Ali está, em torno, a caatinga, o seu celeiro agreste. Esquadrinha-o. Talha em pedaços os mandacarus que desalteram, ou as ramas verdoengas dos juazeiros que alimentam os magros bois famintos; derruba os estípites dos ouricuris e rala-os, amassa-os, cozinha-os, fazendo um pão sinistro, o bró, que incha os ventres num enfarte ilusório, empanzinando o faminto; atesta os jiraus de coquilhos; arranca as raízes túmidas dos umbuzeiros, que lhe dessendentam os filhos, reservando para si o sumo adstringente dos cladódios do xiquexique, que enrouquece ou extingue a voz de quem o bebe, e demasia-se em trabalhos, apelando infatigável para todos os recursos, - forte e carinhoso - defendendo-se e estendendo à prole abatida e aos rebanhos confiados a energia sobre-humana.

Baldam-se-lhe, porém, os esforços.

A natureza não o combate apenas com o deserto. Povoa-a, constrastando com a fuga das seriemas, que emigram para outros tabuleiros e jandaias, que fogem para o litoral remoto, uma fauna cruel. Miríades de morcegos agravam a magrém, abatendo-se sobre o gado, dizimando-o. Chocalham as cascavéis, inúmeras, tanto mais numerosas quanto mais ardente o estio, entre as macegas recrestadas.

À noite, a suçuarana traiçoeira e ladra, que lhe rouba os bezerros e os novilhos, vem beirar a sua rancharia pobre.

É mais um inimigo a suplantar.

Afugenta-a e espanta-a, precipitando-se com um tição aceso no terreiro deserto. E se ela não recua, assalta-a. Mas não a tiro porque sabe que desviada a mira, ou pouco eficaz o chumbo, a onça, "vindo em cima da fumaça", é invencível.

O pugilato é mais comovente. O atleta enfraquecido, tendo à mão esquerda a forquilha e à direita a faca, irrita e desafia a fera, provoca-lhe o bote e apara-a no ar, trespassando-a de um golpe.

Nem sempre, porém, pode aventurar-se à façanha arriscada. Uma moléstia extravagante completa a sua desdita - a hemeralopia. Esta falsa cegueira é paradoxalmente feita pelas reações da luz; nasce dos dias claros e quentes, dos firmamentos fulgurantes, do vivo ondular dos ares em fogo sobre a terra nua. É uma pletora do olhar. Mas o Sol se esconde no poente a vítima nada mais vê. Está cega. A noite afoga-a, de súbito, antes de envolver a terra. E na manhã seguinte a vista extinta lhe revive, acendendo-se no primeiro lampejo do levante, para se apagar, de novo, à tarde, com intermitência dolorosa.

Renasce-lhe com ela a energia. Ainda se não considera vencido. Restam-lhe, para desalterar e sustentar os filhos, os talos tenros, os mangarás das bromélias selvagens. Ilude-os com essas iguarias bárbaras.

Segue, a pé agora, porque se lhe parte o coração só de olhar para o cavalo, para os logradouros. Contempla ali a ruína da fazenda: bois espectrais, vivos não se sabe como, caídos sob as árvores mortas, mal soerguendo o arcabouço murcho sobre as pernas secas, marchando vagarosamente, cambaleantes; bois mortos há dias e intactos, que os próprios urubus rejeitam, porque não rompem a bicadas as suas peles esturradas; bois jururus, em roda da clareira de chão entorrado onde foi a aguada predileta; e, o que mais lhe dói, os que ainda não de todos exaustos o procuram, e o circundam, confiantes, urrando em longo apelo triste que parece um choro.

E nem um cereus avulta mais em torno; foram ruminadas as últimas ramas verdes dos juás...

Trançam-se, porém, ao lado, impenetráveis renques de macambiras. É ainda um recurso. Incendeia-os, batendo o isqueiro nas acendalhas das folhas ressequidas para os despir, em combustão rápida, dos espinhos. E quando os rolos de fumo se enovelam e se diluem no ar puríssimo, vêem-se, correndo de todos os lados, em tropel moroso de estropeados, os magros bois famintos, em busca do último repasto...

Por fim tudo se esgota e a situação não muda. Não há probabilidade sequer de chuvas. A casca dos marizeiros não transuda, prenunciando-as. O nordeste persiste intenso, rolante, pelas chapadas, zunindo em prolongações uivadas na galhada estrepitante das caatingas e o Sol alastra, reverberando no firmamento claro, os incêndios inextinguíveis da canícula. O sertanejo, assoberbado de reveses, dobra-se afinal.

Passa certo dia, à sua porta, a primeira turma de "retirantes". Vê-a, assombrado, atravessar o terreiro, miseranda, desaparecendo adiante, numa nuvem de poeira, na curva do caminho... No outro dia, outra. E outras. É o sertão que se esvazia.

Não resiste mais. Amatula-se num daqueles bandos, que lá se vão caminho em fora, debruando de ossadas as veredas, e lá se vai ele no êxodo penosíssimo para a costa, para as serras distantes, para quaisquer lugares onde o não mate o elemento primordial da vida.

Atinge-os. Salva-se.

Passam-se meses. Acaba-se o flagelo. Ei-lo de volta. Vence-o saudade do sertão. Remigra. E torna feliz, revigorado, cantando; esquecido de infortúnios, buscando as mesmas horas passageiras da ventura perdidiça e instável, os mesmos dias longos de transes e provações demorados.